O homem do apito
Avistei o apito
em repouso na calçada
feito coisa desimportante,
abandonada, pintada com as cores
do esquecimento.
Parei diante dele, resistindo
ao desejo de me tornar portadora
do objeto que anunciava o homem
e indicava a hora exata
de me posicionar à janela.
Ele apitava três vezes
curtas e fortes
como se dissesse
“vem, estou aqui”.
E eu ia, sempre ia.
As pernas trêmulas
faziam o velho dançar
uma batida alucinante
de quem não quer que a música pare
porque tem medo de cair em si.
Um dia ele caiu
e as pernas, antes trêmulas,
nunca mais tremeram.
A vida arrancada de súbito
pela vermelhidão do carro veloz
a passar por cima de tudo.
Restou o apito
em repouso na calçada,
cumprindo a sina
inevitável dos que já nasceram
esquecidos.
Hoje ouvi o som saudoso
dos três avisos sonoros
curtos e fortes:
talvez fosse o velho
talvez um chamado.
Resisti ao impulso
de novamente me posicionar
à janela-encontro,
de onde observava os passos
de seu corpo encurvado e trêmulo
e louco.
Da gaveta da escrivaninha
o apito me encarou certeiro,
amarelou as horas
e prometeu aos meus ouvidos
um ressoar eterno.
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