Se a chuva deixar
Se a chuva deixar, amanhã eu vou ter ver. Não há compromisso que possa impedir. Remarquei o dentista, antecipei as compras da semana e cancelei a visita de uma tia querida. Mas a chuva precisa colaborar.
Faz algumas semanas que os dias são assim, molhados, acinzentados. Desse jeito, prefiro não sair de casa. Prefiro não juntar o meu céu nublado a essas nuvens que insistem em escurecer a cidade.
Na semana passada, quando você me ligou, eu quase aceitei o convite. “Um passeio vai colorir teu dia”, você falou em tom animador. Mas a vontade de solidão era tão grande que até o apartamento parecia gritar: “Fique aqui!”.
E eu fiquei, intercalando Jazz e Blues no Spotify. Depois decidi colocar as leituras em dia e terminei aquela noite jogada no chão da sala, com um caderno na mão. No caderno, rascunhos e mais rascunhos. Talvez deles nasçam crônicas, contos, poemas. Talvez…
Amanhã, se a chuva deixar, eu vou te ver. Sinto que pode ser como antigamente, quando a gente colocava um tênis surrado e saía pelas ruas sem hora para voltar. O mais importante era a conversa, tão rica e intensa, que costumava acabar no bar mais simples, cerveja e cigarro na mão.
Eu sei que estamos em época chuvosa. Nesse período chove todos os dias. Então pode parecer desculpa minha, condicionar o encontro a um elemento tão insistente, tão presente, que não parece disposto a dar uma trégua.
Se estivesse aqui, neste exato momento, você olharia pela janela e diria: “Olha a chuva lá fora! Ela não vai passar tão cedo!” E eu retrucaria, para variar, com aquela mania de positividade vinda não sei de onde: “Vai passar sim! Acredita! Já está passando.”
Mas hoje, a verdade é uma só: prefiro te ver num dia sem chuva. E não quer dizer que eu não queira te ver, simplesmente porque tem chovido muito todos os dias. Eu me agarro à esperança de que, ao amenizar a chuva de fora, também se amenize a tormenta de dentro.
Não há garantias, nunca haverá. Imersa na dor daquilo que preciso viver, vislumbro um horizonte mais limpo, com céu aberto, colorido por um pôr do sol vermelho-alaranjado, daqueles que enchem os olhos e a alma.
Não sei quando tudo isso vai passar, não sei quando vou ter ver. Trabalho em mim essa espera lenta e agonizante, às vezes rompida por um desespero maluco. Enquanto penso na vida e penso em você, levanto da cama e fecho as janelas. Ao fundo, o som dos trovões. Parece que vai chover novamente.
*Conto publicado originalmente pela Revista Eletrônica Ruído Manifesto, em 05/10/2018. http://ruidomanifesto.org/um-conto-de-larissa-campos/
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